'A casa da minha infância estava cheia de sombras, recantos, sótãos e caves e, quando a noite caía, as distâncias desmesuravam-se para aquele rapaz que tinha de atravessar dois pátios para ir à casa de banho, ou trazer o que lhe pediam de uma despensa remota. Sagas sangrentas de assassinos circulavam nas sobremesas familiares e o subúrbio abundava em ladrões e vagabundos perigosos, mas tudo isso, que aterrava compreensivelmente a minha mãe, só incidiu marginalmente nos meus medos. Numa idade que não consigo determinar, a solidão e a escuridão desencadearam em mim outros temores nunca confessados; animalzinho literário desde sempre, o terror chegou até mim através de leituras, o vórtice do pavor foi sempre a manifestação do sobrenatural, daquilo que não se pode tocar nem ouvir nem ver com os sentidos usuais e que se precipita sobre a vítima vindo de uma dimensão fora de toda a lógica.'
:: este apontamento estava perdido no meio de um caderno que, por sua vez, continua perdido no meio de um livro. não vou contrariar o rumo das coisas. ::